sexta-feira, 28 de outubro de 2011

SINDROME DE DOWN E REJEIÇÃO: UM CORPO ESTRANHO ENTRE NÓS?

imagem publicada - a capa promocional do filme O Guardião de Memórias, baseado em um best-seller homônimo, com os atores do filme. À direita está o Dr. David Henry ( ator-Dermot Mulroney) o médico ortopedista, e à esquerda a sua esposa Norah no fime ( atriz-Gretchen Mol). No meio, em tamanho menor, está uma enfermeira, com casaco vermelho(atriz - Emily Watson) segurando um bebê recém-nascido. Este filme baseia-se na história de que no inverno de 1964, sua esposa Norah esta prestes a dar a luz aos gêmeos Paul e Phoebe. David se vê obrigado a realizar o parto e assim acontece. Porém, Phoebe nasce com ´SÍNDROME DE DOWN'. Imediatamente David é remetido as lembranças de sua infância, a doença que levou sua irmã quando era apenas uma criança. Ele não queria passar por tudo aquilo novamente e não queria que Norah "sofresse". David decide então pedir para que sua enfermeira Caroline Gill (a atriz Emily Watson) leve Phoebe a uma instituição para crianças com deficiência. Caroline leva Phoebe, mas não para a instituição e sim para sua vida. David diz para Norah que Phoebe não resistiu e morreu no parto, ele não sabia mas essa mentira destruiria sua vida e a de sua esposa. A partir dai o casal se distancia intimamente, o casamento que antes era alimentado por amor agora passa a ser alimentado por pura casualidade. Norah se fecha em um mundo de frustrações e David em um mundo de fotografias. Na história original do livro de Kim Edwards há um ''corpo estranho e rejeitado" que se torna a luta de Caroline, que criando Phoebe, passa a lutar pelos direitos das crianças com síndrome de down. Talvez esta ficção seja mais realidade do que muitos imaginam... Acho que já assistimos esse filme muitas vezes como dura realidade. Agora com re-apresentação ''real'' no Rio.


Quando e como podemos rejeitar uma criança com Síndrome de DOWN ? A pessoa com esta condição pode vir a se tornar um "corpo estranho entre nós'', como a personagem do filme? Estas perguntas surgiram após episódios, já em repetição quase naturalizada, de um casal que ''abandonou'' seu filho com esta condição humana em uma Clínica particular, na Zona Sul, no Rio de Janeiro.

O meu passado nas navegações, em águas profundas e baixo-fundas, de inconscientes de familiares não me foi suficiente para dar respostas mais claras ou convincentes. Relembrei do filme "Guardiões", pois para mim são 03(três),para me reavivar as memórias, mas elas só me advertiram o quão temerário é apenas "explicar" estas ações ou rejeições de um Outro e sua diferença.

Para que meus leitores e leitoras possam entender o que estarei interrogando trago o que saiu na mídia. No dia 14 de outubro foi noticiado que: "Segue internado em estado grave o bebê com síndrome de Down abandonado pelos pais logo após o parto em uma clínica particular na zona sul do Rio. A criança nasceu há uma semana e está internada na UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) neonatal, com problemas cardíacos. No hospital, o bebê é o xodó dos médicos e enfermeiros. O abandono da criança foi parar na Justiça, que pode encaminhá-la para adoção. Os pais, de classe média alta, podem ser processados e condenados a até três anos de prisão".

Nesse mês que dizem ser das bruxas, e também de alguns profissionais da saúde (médicos, dentistas), esta ocorrência repetida de abandono nos re-apresenta mais um um "corpo estranho". Um corpo estranho entre nós? Perguntarão porque essa associação com uma criança com Síndrome de Down. 

É a forma que encontrei para me/nos provocar uma reflexão crítica e bioética sobre o que se passou com o casal que abandonou recém nascido: Por quê uma criança com Síndrome de Down?. Sei que sua condição foi o fato gerador de toda a indignação pública e notória. 

Mas, mesmo negando, sabemos que nesse mesmo dia muitos outros também foram ''abandonados''. A singularidade da condição desse recém nato é que fez e faz a diferença. Ele sintetiza em seu corpo com suas características genéticas visíveis e, para muitos, gritantemente, a xenofobia. É um estranho entre nós, vem de outro país, outra terra, outro planeta, é visto como pertencente a uma outra ''raça'' ou ''etnia'': os que foram chamados de "mongoloides'' (muito bem representados no filme O Oitavo Dia).

Por ter a experiência de me tornar pai, duas vezes, de filhos com deficiência sou afetado profundamente por estes acontecimentos. E, exatamente, por isso posso tentar entender/refletir o que Jackie Lichie Scully chama de ''corporificação'' da deficiência. Uma experiência que se aproxima, na minha concepção, do conceito da empatia. 

Para esta autora, que vivencia o Movimento Surdo, a corporificação (embodiment) ocorre pois temos percepções diferenciadas na dependência dos ambientes que vivenciamos. Ela diz que, segundo a epistemologia, alguns grupos humanos, como as mulheres, os pobres e os negros, por exemplo possuem uma forma privilegiada para compreender a realidade que os cerca (e cerceia). 

Esta autora pode nos ajudar na busca de entendimento bioético do que acontece com as rejeições ou in extremis a aniquilação de pessoas com deficiências. A visão eugênica e biomédica do corpo com alguma forma de deficiência, fundamentador de paradigmas ainda em transição, justificou, historicamente, desde a Antiguidade Clássica e Grega a ''eliminação'' destes corpos diferenciados e ''estranhos''.

Ainda pode ser este modelo espartano e o sacrifício dos ''defeituosos'', que, transversalizado, atualizado e naturalizado, justificaria os 'abandonos e os abandonados'' na Idade Mídia. Não mais os atiramos do alto do monte Taygetos, não mais os colocamos em experimentação pela medicina nazista, não mais os entregamos na roda dos rejeitados. Modernamente, deixamo-los nascer em clínicas e lá os deixamos, continuando a ficção dos Guardiões da Memória.

Esta história real de abandono pode se tornar um bom e real caso ''Phoebe'' como no filme. Porém mais do que isso deverá ser um bom motivo para que continuemos ajudando na mudança dos paradigmas que se aplicam às deficiências. E, em especial, aquelas que mais ''rejeição ou repulsa'' provoquem nos inconscientes individuais ou coletivos. É lá que temos de provocar a derrocada dos nossos ideais eugenistas ou preconceituosos. Estas ideias, continuo afirmando, tem mais ''imprinting'' ou impregnação profunda da sociedade atual do que se diz ou denuncia-se.

È lá que devemos provocar a crise e o contraste entre um paradigma biomédico e o atual chamado de social. Para o primeiro ainda se justificam medidas de exclusão baseadas na ideia de aborto seletivo, já que, por exemplo, uma síndrome de down por ser geneticamente detectável, alguns pais poderão (e podem) desejar evitar estes ''filhos indesejáveis'' (como no texto que escrevi nesse blog: A pagar-se uma criança com Síndrome de Down). 

Surgem daí as interrogações bioéticas sobre autonomia, as institucionalizações, os aconselhamentos genéticos, a prevenção das deficiências, e a questão e dilema dos abortamentos. Aí se apresentam os temas que não podemos deixar de enfrentar, discutir e buscar respostas para o futuro.

As conceituações, assim como os pré-conceitos, que damos aos termos saúde, normalidade e deficiência, não são claras ou objetivas. São construídas ou naturalizadas para justificar, historicamente, as diferentes tecnologias ou métodos de segregação a que pessoas com deficiência foram, e, lamentavelmente, ainda são aplicadas tanto na saúde como na educação. 

Para isso é que urge a afirmação do que chamamos de Sociedade Inclusiva e sua concretização. E pessoas, como estes bebês "Phoebe" com Síndrome de Down, caso sobrevivam a todas as formas de abandono, tornar-se-á, quando incluídos, sem nenhuma forma de discriminação ou exclusão, em todos os espaços da vida, da família a escola, uma possibilidade vital e não mais um ''corpo estranho'' entre nós...


copyright jorgemarciopereiradeandrade  -  2023 ATUALIZADO (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet ou outros meios de comunicação de massa) TODOS DIREITOS RESERVADOS

Referências Bibliográficas no texto:
Corporificação da deficiência e uma ética do cuidar - Jackie Lichie Scully, in Admirável Nova Genética: Bioética e Sociedade, Débora Diniz (Org.), Editora UNB/Letras Livres, Brasília, DF, 2005.

'Páginas da vida' na vida real =Pais abandonam criança com Síndrome de Down em hospital no Humaitá
https://oglobo.globo.com/rio/mat/2011/10/14/pais-abandonam-crianca-com-sindrome-de-down-em-hospital-no-humaita-925586800.asp#ixzz1bqhJVNQC

Pais abandonam trigêmeas em hospital https://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1111797

Filmes indicados para reflexão e re-pensar:
- O GUARDIÃO DE MEMÓRIAS -Direção: Mick Jackson -Lançamento: 2008 
https://www.interfilmes.com/filme_20163_o.guardiao.de.memorias.html

- Gattaca - A Experiência Genética - 1997 
https://www.youtube.com/watch?v=KLzmSj24nTY

Leia também no BLOG

O VIGESSIMO PRIMEIRO DIA - CINEMA E SÍNDROME DE DOWNhttps://infoativodefnet.blogspot.com/2010/03/o-vigessimo-primeiro-dia-cinema-e.html


A PAGAR-SE UMA PESSOA COM SÍNDROME DE DOWN

6 comentários:

  1. Eis mais um texto que provoca as tentativas de explicar sobre nossa condição de seres humanos, porém, com a tarefa de nos humanizarmos. Somos resultados de "raça" ou "etnia"? Mudam-se as palavras e continuam os preconceitos e discriminações. Neste caso, penso que somos cruéis e achamos até no direito de escolher onde, como irão estar as pessoas com deficiências. Nos achamos tão "superiores" que respondemos assim: o melhor lugar para seu filho é ali e não aqui... que pretensão, não é mesmo?
    Obrigada por mais este texto.
    Abraços,
    Ana Floripes

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  2. Ah, outra coisa, e no caso do bebê citado, os pais até escolheram abandoná-lo no primeiro instante que o viram. Vivemos no mundo das aparências e chego a pensar, como será que foi a educação deste casal com relação ao sentimento AMOR... Sinto muito mesmo. O abandono do bebê prova a falta de AMOR.

    Ana Floripes

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  3. Enquanto isso: Fernanda Honorato em Cianorte - Paraná (Primeira Repórter com síndrome de Down do mundo).
    http://www.educacao.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=3030&tit=Cianorte-sedia-encontro-sobre-inclusao

    Ana Floripes

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  4. Tenho uma sobrinha que é Down, um presente em nossas vidas, um exemplo de humanidade para seguirmos, pois ela é somente e simplesmente amor e generosidade. Fico pensando como seríamos infelizes se ela não tivesse aparecido. Pena que nem todos compreendem isso.

    Vou ver se consigo este filme, parece mto bom.

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  5. Difícil é entender como pode o mesmo ser humano que incorpora os conceitos coletivos e morais de responsabilidade ética atual para com os filhos , possa ao mesmo tempo, abandonar outros por não se enquadrarem ao modelo de perfeição desejado, aos quais ele mesmo não se projeta e ter as mesmas atitudes consciente/inconscientemente, direta ou indiretamente de exclusão do modelo medieval.

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  6. ótimo texto! difícil entender como seres humanos podem ao mesmo tempo terem uma identificação com as noções de responsabilidade e ética para com os filhos e antagonicamente possa ter reações de rejeição explícitas ou implícitas para com os diferentes.

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