terça-feira, 3 de julho de 2012

EU, VOCÊ, NÓS E O CÂNCER.


Imagem publicada – a foto em preto e branco de uma silhueta humana que se vira para uma rampa de onde vem uma luz que a ilumina. Há um banco vazio, semi obscurecido no lado esquerdo. O mesmo que encontramos muitas vezes em parques ou diante de mares onde os seres humanos podem vivenciar a experiência de solidão e isolamento. É este o espaço no qual num devemos nem nos confinar e nem sermos confinados ou aprisionados. É no encontro com o Outro para além da rampa e da luz, no meio da cidade ou do campo ou das matas, que devemos procurar as respostas para os nossos mais íntimos medos e temores.

Assim falou um ancião: “Aceite as ansiedades e dificuldades desta vida”. Não espere que sua prática seja livre de obstáculos. Sem eles, a mente que busca iluminação pode se queimar. Assim falou um ancião: ‘Alcance a liberdade nas perturbações”. Mestre Zen Kyong Ho (1849-1912)

Ainda mantemos, inclusive pela midiatização e pela Sociedade do Espetáculo, uma visão estigmatizante de uma palavra que a todos pode incomodar: o câncer. Há um estigma que permanece no ar e que as biotecnologias, talvez por seus próprios avanços e retrocessos, aprisionam com temores algumas mentes e corações.

Toda vez que ouvimos a palavra câncer ainda temos um suspense, uma dúvida, e com certeza um temor. Imaginemos que ao realizar um exame, seja uma radiografia, tomografia ou uma ultrassonografia, ouçamos ou se leia a indicação de um “tumor”, ou nome biomédico de neoplasia.

Há sempre um mal-estar, um sentimento de perda antecipada que, lamentavelmente, ainda associamos às palavras ligadas a um câncer. Temos aí incrustadas algumas metáforas, algumas formas de significação e, com certeza, significantes que impregnaram e ainda impregnam nossos inconscientes.

O que devemos tentar, então, reaprender quando um diagnóstico ou sua suspeita nos levar à palavra que traz um “caranguejo” subjacente? Ultimamente, graças à sua intensiva midiatização, pudemos ver desde atores famosos, presidentes e presidentas, todos diagnosticados com câncer, vivenciando o que mais anima os que o temem: a “cura”.

Assim como algumas doenças raras, que já estão sendo progressivamente investigadas e tratadas com células tronco, há um investimento, de longa duração, da medicina oncológica que mudou radicalmente os prognósticos e o futuro dos que vivenciam esta enfermidade.

Porém para além dos avanços farmacológicos, cirúrgicos ou biotecnológicos, há um campo que precisamos abordar e investigar. Há 32 anos, quando ainda trabalhava em um Hospital Geral, pude refletir sobre o tema na prática: a questão das emoções que são vivenciadas por quem vive ou sobrevive com um câncer.

Na época já me indagava sobre a relação que eu, você e nós racionalizamos ou hiperdimensionamos com o câncer. Conheci seres humanos intensos e sofridos, que passavam pelo diagnóstico de mielomas, leucemias, tumores do rim em crianças ou câncer de mama, e em todos os casos sempre procurava analisar a relação entre o câncer e nossas pulsões tanáticas.

Muitas vezes interroguei a presença de emoções, que chamo de tanotofílicas, ou seja, alguns desses “pacientes temiam mas não deixavam de abraçar a Dona Morte”. Medos ou até pulsões recônditas, daí tanáticas, ou pensamentos ou emoções autodestrutivas, oriundas de Thanatos, que Freud considerava a pulsão opositora/complementar da outra: Eros, que podemos chamar de Pulsão de/pela Vida.

Na queda de braço entre essas pulsões, vi e acompanhei ainda médico residente, a vitória da Dona Morte que arrastava algumas pessoas mais depressa para seus óbitos. Era como se abraçassem a Dona Morte como solução para esta vivência do corpo com uma anomalia cancerosa. Por isso mesmo já aplicava a necessidade de outro cuidado com estas pessoas: o suporte afetivo e psicológico.

Diante da transitoriedade do viver e da inevitabilidade do morrer precisamos aprender com o Outro a superação de nossas limitações humanas. Temos como mitos ancestrais gregos vários Prometeus, Sísifos e Perséfones. Estaremos sempre com a “espada de Damôcles”, aquela presa apenas por um fio, eternamente sobre nossas cabeças.

O grande compromisso bioético então é que possamos nem cair numa negação de nossa finitude assim como seu inverso. Há um desejo perene no homem de vencer a Dona Morte. Sonhamos há séculos com a imortalidade e a juventude eterna. Mas o ancião zen nos lembra que nem imortais evitaremos as perturbações, pelo contrário é nelas que vislumbramos nossa liberdade.

O que a medicina moderna precisa é não cair na glamourização de um modelo House. Não podemos glorificar o utilitarismo ou o paternalismo. Não podemos negar as mudanças de paradigmas, e sim deseja-las com todo coração e intensidade. No campo da oncologia e das doenças terminais temos de aprender a promoção da dignidade, tanto para viver quanto para o morrer.

Eu, você, nós e os outros temos de desatar nossos mais íntimos ‘’nós górdios’’, aqueles que só se desfazem pela ação violenta de uma espada. É quando temos de extirpar de nós primeiro o medo, depois aquilo que transformarmos em sombra da Dona Morte.

Eu, aqui temeroso como vocês terei de enfrentar novamente um ato cirúrgico. Precisarei agora de mais forças e determinação do que antes. As experiências que guardamos podem ser traumáticas. Eu, aqui apenas humano, já me deixaram com algumas...

Há alguns medos que se relacionam com a minha própria morte: primeiramente a ideia e a sensação física ou psíquica de um sofrimento, ligado ao medo de morrer/sofrer. Há ainda as ideias de castigo e de rejeição que muitos apresentam, hoje reforçadas pelos movimentos religiosos.

E subjacente a todos os medos, vivenciamos o medo universal, pós Hiroxima e Nagasaki, que é o aniquilamento e a extinção, alimentados pelas nossas agressões e descasos persistentes, com a negação de nossa relação ecosófica com a água, o ar, a terra e todos seus elementos. É o que poderíamos chamar de um medo cósmico com nosso próprio corpo-extensão chamado Planeta Terra.

Mas entre todos os medos, até os próprios médicos como eu devem vivenciar. Há um que nunca podemos negar. É o medo da morte dos OUTROS. Tememos profundamente, ao tempo que muitos a desejam, a solidão humana. É aquele explorado pelos filmes apocalípiticos a moda de pós-destruição nuclear, e o nosso dia seguinte como únicos sobreviventes na face da Terra.

Daí decorre o que chamo de vulnerabilidade e o processo a que estamos permanentemente submetidos pelas nossas vulnerações. Em especial pelo que chamamos de Estado. O mesmo que promove, com as guerras, torturas e a negação dos direitos humanos, a exclusão, o encarceramento, a injustiça ou a marginalização que podem degradar e retirar toda dignidade de um ser humano. É, quando viramos, como diz Agamben, matáveis e VIDAS NUAS. Daí nasce os Estados de Exceção. Temos medo de nos tornar sobreviventes e sós.

Por haver uma humanidade em minha condição de ser é que digo o quanto é importante uma atenção aos nossos afectos. O mundo das emoções e de nossa mente interage diretamente com os muitos adoecimentos do nosso frágil corpo.

É nesse espaço que estou agora aprendendo um pouco mais, agora que entro amanhã, mais uma vez em um centro cirúrgico. E, humano demasiadamente humano, lhes digo: eu tenho medo da Dona Morte.

Porém também lhes digo é com ela que aprendemos a mais importante das artes: re-existir e criar novas cartografias, novos sentidos, novas experiências e invenções para uma vida com intensidade e bons encontros.

Então, faço agora apenas um brinde ao medo, mas sei que esta escrita é que me retira do que pode impedir os voos de minha mente, e esta é a melhor forma de lidar com os temores relacionados com aquela a quem escrevo mais uma cartinha: a Dona Morte, dizendo-lhe que ela pode pensar que é, mais ainda não é a minha dona
.
Ainda vou, vamos, ou tentaremos alcançar a liberdade no meio das tormentas ou perturbações...pois cada momento é um novo momento.


Copyright jorgemarciopereiradeandrade 2012-2013 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet ou outros meios de comunicação de massa)

Leitura recomendada:
Introdução ao Zen-Budismo – Daisetz Teitaro Susuki – Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, RJ, 1973.
Psicologia da Morte – Robert Kastenbaum &Ruth Aisenberg, Editora da Usp, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 1983.

LEIA TAMBÉM NO BLOG:

CARTAS deVIDAs à DONA MORTE http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/08/imagem-publicada-foto-do-ator-al-pacino.html

NOSSAS IN-DEPENDÊNCIAS da DONA MORTE em 11/09/11
http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/09/nossas-in-dependencias-da-dona-morte-em.html

NENHUMA DOR A MENOS OU A MAIS
http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/10/nenhuma-dor-menos-ou-mais.html

OS NOSSOS CÃES desCOLORIDOS - Nossas "depressões" e o Dia Mundial da Saúde Mental http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/10/os-nossos-caes-descoloridos-nossas.html

13 comentários:

  1. Na torcida por você! Tudo vai dar certo!!! Precisamos de sua força e luta na guerra que travamos contra o preconceito neste país!
    Deus te abençoe sempre!!!

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    1. Carissima GI
      obrigado pela força e carinho, e lembro o que disse outro dia para uma moça, uma jovem que já enfrentou o câncer: a vida tem suas pontes, o que não podemos é parar quando estas forem mais duras e de concreto... temos sempre que seguir em frente e atravessá-las com o máximo de dignidade possível. Um doceabraço

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  2. Jorge meu querido cunhado há tantos cânceres e tantas mortes no decorrer de uma vivência com um único propósito o de se melhorar como ser humano a cada dia para si e para os convives, conforme diz o ancião “Alcance a liberdade nas perturbações”, vc sabe que passei por isso e a minha moral da história é que: foi um obstáculo que passou estou curada e melhor em muitas coisas, não pelos livros de auto-ajuda, mas pelo câncer que me fez ver a minha prepotência diante daquilo que pensava poder controlar diante da natureza, das pessoas e principalmente prepotente comigo mesmo, tive que baixar a guarda, mas uma coisa vc pode ter certeza o que foi e ainda é, para mim, o santo remédio, além das químios, rádios e tudo mais, o amor daqueles que me amam e que estiveram por perto o tempo todo seja fisicamente ou em pensamento, aceite ajuda, aceite ser amado, aceite que a Dona Morte é para todos mas carinho e estima é para poucos.
    Não tenho dúvida que vc passará por mais essa, e sairá muito melhor.
    Beijos com carinho
    Esther.

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    1. OI Ester
      Saímos todos mais fortes e renovados pelo desejo de viver na contramão de nossas pulsões de morte... e aprendemos um pouco a cada nova travessia... por isso a nossa geração disse: vem vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora e não espera acontecer... UM DOCEABRAÇO

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  3. Texto fantastico! Na torcida sempre! Que Deus sempre esteje ao seu lado, refletindo toda a energia benefica necessaria para sua saude e aguardamos noticias. Beijos repletos de saude, paz, paciencia, energia, forca, luz,etc,etc, Carmen Dinamarco

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    1. Cara Carmem
      obrigado pelo elogio ao texto e pela força ao meu desejo de luta e vida com saúde... espero que possamos continuar tendo força e determinação para a mudança de paradigmas na educação, saúde e direitos das pessoas com deficiências, sejam nossos filhos, parentes ou quando vivenciamos deficiências na própria pele... a mesma que forma o nosso verdadeiro Eu corporal e enfrenta quaisquer das ameaças de nosso mundo externo, e nos aproxima dos Outros na busca de vencermos juntos os nosso temores e terrores, aqueles que habitam nossos subterrâneos inconscientes... um doceabraço
      jorge marcio

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  4. JORGE, VC SÓ PRECISA CONTINUAR SINTONIZADO EM DEUS, A DIFERENÇA VC JÁ ESTÁ FAZENDO NESTE MUNDO TÃO INDIFERENTE. ESSE TEXTO REALMENTE FANTÁSTICO, ESSA DONA MORTE É CERTA PRA TODOS, MAS O QUE É RELEVANTE... JESUS VENCEU A MORTE, POR AMOR A VOCÊ. PORTANTO ELE É VIDA E DEUS DE MILAGRES.

    BEIJOS NO CORAÇÃO, FICA NA PAZ.
    DA GUIA.

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    1. Cara Guia
      obrigado por integrar uma grande corrente de afeto e fé de muitos amigos e amigas que me desejam Vivo, Ativo e continuando a nossa luta pelos direitos humanos de pessoas com deficiência no Brasil. um doceabraço

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  5. Caro Amigo e Mestre Jorge,

    Vim acompanhando suas falas em seu Blog e estava com dúvidas sobre sua situação de saúde, mas agora pelo que estou entendendo estas se tratando de cancêr. Bem, meu querido, eu me trato no INCA aqui no RJ desde 2008, (Cancêr Melanoma de Pele) e além desse tenho todos os tipos de Pré-Canceres de Pele e Canceres de Pele.Mudou várias coisas em minha vida pessoal e profissional, como funcionária pública da Educação sou readaptada, ou seja atuo com Educação Pública (não sou aposentada) mas, minha posição modificou, já sofri pré-conceitos e pós-conceitos, mas também re-aprendi com os pacientes do INCA a luta pela vida e pela saúde, pela mudança de paradigma na forma de viver e entender as relações com a saúde e com a vida. Hoje em dia minha situação está mais controlada e já arrisco em pensar que estou livre e curada, mas estou prudente e devagar nesta decisão, pois é psicossomática esta decisão, é social, é pessoal, é infinita!!!
    Por isso caro amigo de lutas e conquistas, siga com sua inteligência poética e decida a vida em você, descanse mais, ame mais.....sorria mais, dê grandes gargalhadas "do nada" como nos diz o Poeta Manoel de Barros em seu livro sobre "O Nada".
    Jorge, você é tudo!!! Tudo de bacana, de vivacidade, de inteligência estética, enfim conte comigo tá!
    Bj Boa Sorte e muita saúde! Gabriella Rangel

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  6. Lindo texto, amei e repensei algumas coisas sabia...
    Saude meu querido amigo e nunca desista dessa luta, como sempre digo, eu aprendi a ser ums er humano melhor apos ter vivenciado essa experiencia do cancer e a luta nao para

    Forte abraço

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  7. Sua mente extraordinária sempre está nos ensinando a ver todos os confrontos necessários, todos os pontos de vista. Receba o nosso grande abraço. Não há palavras, somente um enorme afeto e sentimento de agradecimento por você, amigo querido. Gisleine.

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  8. A morte me assusta menos do que a morte em vida. O Alzheimer que presenciei em minha mãe e em sua irmã, minha tia. Esse, apesar de não nos matar de morte, em sua real acepção, mantém-nos em estado de zumbis, semi-vivos, sem mesmo termos a consciência de estar morto... Ser um incômodo, um fardo, um morto-vivo, que deve ser alimentado, cuidado, lavado, vestido, agasalhado... Para mim é o que parece mais terrível do que todas as mortes. Quando se sofre de um câncer, os que nos cercam são condescendentes, mais do que quando somos transformados em zumbis... Essa é a morte que me apavora!

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  9. Oi, Jorge! Te parabenizo pelo lindo texto que escreveste, ao abordar um tema tão difícil! A sutileza de iniciar e concluir falando de liberdade dentro desse contexto foi perfeita! Parabéns mesmo!! Shirley Fernandes Barros.

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