domingo, 20 de fevereiro de 2011

INCLUSÃO/EXCLUSÃO - duas faces da mesma moeda deficitária?


imagem publicada - foto colorida, onde um rapaz holandês cabisbaixo, sentado e de mãos entrecruzadas, olha para o nada. Ele é Brandon van Ingen, um jovem com deficiência intelectual, que vive como Prometeu acorrentado a uma parede, sem ver a luz do sol, desde 2007. Por recomendação médica, ele vive atracado, como uma Nau dos Insensatos, à parede de seu quarto em uma clínica psiquiátrica, na cidade de Ermelo, no centro da Holanda. (fotografia de Evangelische Omroep)

"Toda pessoa tem o direito a um recurso efetivo, perante os tribunais nacionais competentes, que o amparem contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição e pela lei." (Artigo 8º da Declaração Universal dos Direitos Humanos)

Passei, mais uma vez, um dia refletindo sobre o processo de construção dos pré-conceitos que ainda cerceam e mutilam a dignidade da vida de pessoas com deficiência e dos que vivem com transtornos psíquicos cronificados. Joguei para o alto uma moeda, buscando um cara ou coroa jurídico-judicial. Tudo começou com uma mensagem por e-mail de uma amiga, que é professora, uma educadora que trabalha com a Educação Especial, lá no Sul do nosso Brasil. Ela vive defendendo autistas, paralisados cerebrais e outros ditos 'deficientes" por lá. Nessa mensagem urgente e emergente ela pede ajuda para defender a seu irmão.

Para que possamos refletir juntos, caros leitores e leitoras, vou criar uma brevíssima ''estória", tento proteger o personagem principal de mais uma história que recebi hoje. O nome do personagem será trocado pois sua condição de uma pessoa com deficiência intelectual, com diagnóstico de um transtorno mental, merece meu respeito, reverência e imperativo éticos. A sua identidade, neste texto, não é o principal, mas ainda poderá vir a ser revelada, assim espero. Reduzir a vida humana e suas singularidades/multiplicidades ao modelo Twitter me é impossível, mas como sempre devemos começar com o ''era uma vez".

Era uma vez.... uma mulher lá no interior do Paraná, ela iria ''dar a luz", e, "por estar sofrendo de eclampsia", no momento de seu parto ela recebeu uma força extra: "um enfermeiro subiu na sua barriga para que o meu irmão pudesse nascer", me conta a professora.

A mãe e o filho passaram, portanto, por uma situação muito frequente em nosso país: traumas antes, durante ou após o parto, chamados "tocotraumatismos", uma das principais causas de sofrimento fetal e de mortalidade materna. Estes são também causa de Paralisias Cerebrais. Ambos, mãe e filho, devem ter tido problemas de oxigenação, a mâe devido ao aumento de pressão arterial, e o bebê no trabalho de parto, com certeza, no mínimo, uma baixa oxigenação (hipóxia) de seu SNC (Sistema Nervoso Central).

O bebê que chamarei de JANO conseguiu vencer a morte. Segundo sua irmã, a professora Flor: "Dado como morto foi colocado numa mesa fria, minha avó Ana o pegou e levou para casa, ficou na beira do fogão à lenha durante dois dias e ele sobreviveu". Porém este mesmo Jano veio a se tornar um sujeito com deficiência intelectual, aquela que ainda muitos chamam de "mental". É quase certo que isso decorreu de seu sofrimento fetal e das condições precárias em que sua chegada ao mundo foi realizada.

Ele foi com certeza uma criança com dificuldade para andar e falar, o que sua irmã confirma e acrescenta: "O Jano, até um ano de idade, não se virava no berço. Minha mãe sempre o virava de um lado para outro, preocupada para que não ficasse com a cabeça defeituosa". As sequelas neurológicas de seu parto não foram precocemente diagnosticadas, ele vivia em uma pequena cidade, onde, certamente, não havia seguimento neuro pediátrico, com é indispensável para quem passou por tudo que ele sofreu.

A sua trajetória de enfrentamento dos obstáculos para o viver não cessaram no seu nascimento. Ele, Jano, hoje está enfrentando uma possível e tradicional solução final para os que vivem com uma deficiência intelectual. Ele está para ser ''internado em um manicômio", por determinação judicial expedida por um Juiz.

Mas, para que entendam a história de Jano é preciso dizer que ele é descrito como uma pessoa que segundo a irmã: -"Meu irmão não oferece risco à sociedade e trabalha das 22h às 5h da manhã, dorme durante o dia, ele passa roupa numa empresa situada num município do interior do Paraná. Ou seja, mantém-se ocupado e trabalha sem parar. É trabalhador! Ele é mais "lento" que os demais e foi contratado porque queria trabalhar até na hora do intervalo, para conseguir chegar perto do número de produção dos demais trabalhadores. Trabalhando neste horário, não tem tempo para beber bebida alcoólica  Não é caso de manicômio, se realmente ficar lá, daí sim sairá "louco"..."

Jano, o nome que lhe dei não é aleatório. Nomeá-lo assim apenas expressa a ambiguidade dos processos de "inclusão" institucional a que muitos são submetidos. Ao tempo que os protegemos (e a nós) também os condenamos a poderosas forma de exclusão. Ele é Janus, o deus mitológico de duas faces, uma que nos mostra o passado e outra que nos aponta o futuro.

 Uma que teríamos de considerar ao fazer um julgamento do crime ou delito que cometeu, que diz ser em nome de uma relação amorosa e sua traição . E outra, um devir, que aponta para a forma como o julgamos, psiquiátrica, psicológica e judicialmente. Nós, nas nossas normalidades e defesa da Sociedade só lhe apontamos, como os Juízes, uma saída ou solução: a internação em um hospital de custódia, o nome eufêmico de um Manicômio Judiciário nos velhos tempos da chamada periculosidade.

O jovem/velho Jano, nos seus 46 anos já vividos conseguiu algumas "inclusões". Ele foi alfabetizado, frequentou com dificuldades até antigo segundo grau, hoje ensino médio, casou, divorciou e tem um filho adolescente, e trabalha em uma lavanderia. Ele conseguiu o que muitas pessoas com deficiência ou com alguma forma de transtorno mental não conseguem. Eles vivem múltiplas barreiras e os infinitos preconceitos que os limitam. 

Ele vivenciou tudo o que pode ter complicado sua vida e seu mundo interno. Passou, devido a motivos históricos, sociais e subjetivos, teve diferentes trabalhos manuais, foi dispensado do serviço militar obrigatório, e, infelizmente, por uso abusivo de bebidas alcoólicas, por internação em Centro de Recuperação.

No campo das hospitalizações a história da Loucura esteve e está entremeada com o modelo e paradigma reabilitador das deficiências. Esta situação, lamentavelmente, é muito habitual, no campo da saúde mental, onde as situações de chamados ''retardamentos mentais" são acrescentados aos diagnósticos de muitas pessoas com transtornos mentais. 


E vice-versa. É aí onde se cruzam, novamente, a inclusão e a exclusão. Os sujeitos deixam de existir como cidadãos e passam a ser números da Classificação Internacional de Doenças e estados relacionados, a CID-10(OMS). É a passagem de Jano para F.70 ou F.78 ou F.79. O hospital psiquiátrico, a internação é o melhor para eles e para a Sociedade (?).

Já escrevi que há milhares de seres humanos, aproximadamente 4500 pessoas, que estão hoje internadas nos infernos dantescos de Manicômios Judiciários. A bioeticista Debora Diniz nos presenteou com um magnífico e premiado documentário: a Casa dos Mortos. Acerca dele escrevi o texto: Os Vivos e os Esquecidos na Casa dos Mortos.

Por isso digo que: caso Jano, por um crime passional, sem a possibilidade de outra forma de justiça, tornar-se mais um a ser encaminhado para um manicômio judiciário, como punição, teremos, então, o + um que faltava para completarmos o esquecimento desses sujeitos aprisionados. A sua institucionalização é única a solução?

Era uma vez + 1. Sim, mais uma vez repetimos a História: para incluirmos estaremos excluindo. Os que representam o ''mal'' e os ''desvios da ordem'', tal qual os que são considerados ''anormais'', ainda nos provocam para serem enclausurados. A história-estória não tem fim.

Porém se pudermos retirar o pré-conceito de periculosidade que ainda é aplicado, indiscriminadamente, a todos os transtornos mentais crônicos, as medidas de segurança que utilizaremos poderão, talvez um dia, vir a ser mais inclusivas, menos excludentes. Portanto, nessa nova visão, com embasamento em direitos humanos, tentar-se-ia aplicar a quem diagnosticado com ''doença mental" associada a "retardo mental'' uma outra forma de cuidado, ressocialização ou proteção.

Assim confirmou a irmã de Jano: "Quando foi ao manicômio para ser realizada a avaliação com a equipe forense, chorou muito e sentiu pânico ao ver a situação dos pacientes que lá estavam internados...".

Será que ele conseguirá, em um novo julgamento, demonstrar a um magistrado o quanto ainda precisamos modificar as práticas, penas e judicializações de quem tem uma diversidade funcional e cognitiva? Para isso seria ideal que os operadores do direito e da Justiça vivenciassem apenas um (01) dia na Casa dos Mortos.

Afinal temos, conforme recente matéria do Jornal O Globo (16/02/2011) um possível revival psiquiátrico fisicalista com o retorno das lobotomias e do uso da eletroconvulsoterapia. Dizem ser apenas para os casos considerados ''sem esperança'' de cura ou tratamento pelos medicamentos psicofarmacológicos... 

Porém, no espaço destinado aos ''loucos infratores", temos um campo onde a Bioética e os Direitos Humanos não se cansam de apontar para sua vulneração ativa e a transformação destes em ''cobaias humanas" para experimentação biotecnológica.

Quantas faces tem uma moeda? - sempre digo que esquecemos de seu "terceiro" lado, a face que une as duas faces de Jano. Nos milhares de Janos com deficiência intelectual qual é a sua verdadeira face? Vamos procurá-la antes de encontrar a solução mais fácil, institucional, naturalizada, e final: o encarceramento?

copyright jorgemarciopereiradeandrade 2011-2012 (favor citar o autor e as fontes em reproduções livres na Internet ou meios de comunicação de massa)

Leia também no Blog - Deficientes Intelectuais - Encarcerar é a Solução Final?http://infoativodefnet.blogspot.com/2011/01/deficientes-intelectuais-encarcerar-e.html

Indicação para Reflexão:
A Casa dos Mortos - documentário - Débora Diniz
http://www.acasadosmortos.org.br/#

Contribuições para o debate e para a leitura crítica sobre o tema:
A estratégia da periculosidade: psiquiatria e justiça penal em um hospital de custódia e tratamento http://priory.com/psych/perigo.htm

A doença mental no direito penal brasileiro: inimputabilidade, irresponsabilidade, periculosidade e medida de segurança-
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-59702002000200006&script=sci_arttext

A periculosidade social e a saúde mental -
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1516-44461999000400006&script=sci_arttext

A lobotomia e o eletrochoque ganham novas aplicações no tratamento de doenças -
http://oglobo.globo.com/ciencia/mat/2011/02/16/a-lobotomia-o-eletrochoque-ganham-novas-aplicacoes-no-tratamento-de-doencas-923812915.asp

Indicações bibliográficas:

Bioética
Claudio Cohen & Marco Segre (Orgs.) - Ed. Edusp - São Paulo, SP, 2002.

Direitos Humanos - normativa internacionalOscar Vieira Vilhena (Org.) - Ed. Max Limonad - São Paulo, SP, 2001.

El sufrimiento mental - El poder, la ley y los derechosEmiliano Galende & Alfredo Jorge Kraut - Ed. Lugar Editorial - Buenos Aires, Argentina, 2006.

Psiquiatria Social e Reforma Psiquiátrica
Paulo Amarante (Org.) - ver Cidadania versus Periculosidade Social: a desinstitucionalização como desconstrução do saber, Denise Dias Barros, pág. 171.Ed. Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, 2008.

Vulnerabilidade e Vulneração: quando as pessoas com deficiência, passam a ser questão de Direitos Humanos?
Jorge Márcio Pereira de Andrade - in Revista Saúde e Direitos Humanos, Ano 6 Número 6,Ministério da Saúde/FIOCRUZ, Brasília, DF, 2010.