sábado, 25 de fevereiro de 2012

CARTA A UM JOVEM COM SÍNDROME DE DOWN NA UNIVERSIDADE

Imagem publicada – a foto de Alysson de Azevedo, com seus óculos, seu simpático chapéu, diante de um computador, com um caderno espiral de inglês para vestibular na mão, em provável espaço de estudo e interação com o mundo. Um jovem com Síndrome de Down que passou na primeira fase do vestibular da UFRN, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que quer ser e um dia será turismólogo, ou seja, um estudante da Faculdade de Turismo que sonha também em ser escritor. Ele alimenta sonhos. Segundo a reportagem: ...” Outro objetivo, com o qual ele já começou a trabalhar, é o livro "A Revelação". Mas o que vai revelar? "Vou falar do bullying, do preconceito, do racismo que as pessoas têm". Hoje o trago à memória e para não ser esquecido, no mesmo tempo de comemorar a entrada de outro jovem Down na Universidade. Estes jovens me revelam ou nos revelarão?

“As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, — seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera”.(Ranier Maria Rilke Cartas a um Jovem Poeta - 1929 – publicação póstuma)

Ontem sonhei que estava em uma prova de português de minha saudosa professora Martha Antiero, lá no período Ginasial de minha terra natal. Sonhei e entendi o sentido oculto de minha atividade onírica. Estava me preparando para escrever, no sonho e na realidade, uma carta. Mais uma missiva, mais uma histórica e marcante carta.

Era preciso, no sonho, que esta carta fosse dirigida a uma pessoa jovem. Eu sonhei colorido, sonhei o que estava acontecendo nesses dias. No dia de ontem eu fiquei muito emocionado com uma notícia: “Aprovado no vestibular, 1º aluno com Down da UFG rompe preconceito”.

Afirmei, e postei de imediato no Facebook: Esta matéria trouxe no título da mesma a grande mudança de paradigmas que temos de continuar tentando implementar e realizar: ROMPER TODOS OS PRECONCEITOS CONTRA TODOS E TODAS...

Era o jovem Kallil Assis Tavares, de 21 anos que conseguiu, por mérito próprio e sem privilégios, entrar na Universidade Federal de Goiás. Ele irá estudar geografia.
Kallil faz com sua conquista uma mudança radical e neo-cartográfica no que se produziu de conceitos e preconceitos sobre as pessoas com Síndrome de Down.

Como escrevi no Face book, ao insistentemente difundir a notícia, ele nos ajuda a quebrar um paradigma sobre as deficiências intelectuais no campo universitário. Mas não deveria ser tomado como o primeiro e único sujeito com Síndrome de Down a romper essa barreira.

Mas como escrever a minha carta ao jovem Kallil ou ao jovem Alysson sem cometer, como no sonho, os erros que nos torna humanizados? Precisaria da valiosa ajuda da Profª Martha Antiero?

Será que, sem a minha saudosa professora, terei a capacidade de não cometer alguma falha como as que a mídia costumeiramente faz ao se reproduzir essas notícias ‘’raras’’ em manchetes?

Aliás, somos todos “raros”, únicos e singulares, por isso devemos nos lembrar que em alguns dias estaremos comemorando o Dia Internacional das Doenças Raras. No dia 29 de fevereiro, o Instituto Baresi, nos lembrará dos que por serem ‘’poucos’’ quantitativamente, tornam-se ‘’raros’’, mas nem por isso devem deixar de ser motivo de seu e o nosso mais profundo respeito. E de política públicas, é claro!

O Kallil ou Alysson podem também se tornar, para um olhar midiatizado, em ‘’raridades’’, quando deveriam aí sim se tornar uma afirmação de igualdade de oportunidade. Eles só conseguiram seus “feitos” por mérito próprio por terem acesso ao conhecimento, e nele terem afirmado o seu direito humano à educação.

Por ter tido uma professora tão marcante como a “Dona Martha” é que hoje posso estar fazendo esta tentativa de escrever a estes jovens. Ainda cometo alguns deslizes ortográficos, ainda erro algumas palavras, mas como a escritora e professora do “Desafio aos Limites” continuo arriscando a escrita, arranhando com carinho algumas letras...

AÍ VAI ENTÃO MEU RECADO AOS JOVENS DOWNS QUE ENTRAREM NAS UNIVERSIDADES: (pois muitos ainda entrarão!)

Caros jovens, meus doces desconhecidos Kallil, Allyson e outros meninos e meninas do futuro hoje.

Durante algum tempo, em meu âmago, vocês me lembrarão de um poeta: Ranier Maria Rilke. Ele escreveu há muitos anos atrás um livro que marcou nas primeiras leituras. Foi Rilke que me inspirou o título desta mensagem com suas “Cartas a um Jovem Poeta”. Por vocês devo relê-lo para reaprender...

Ele escreveu um texto que me inspirou a arriscar há muitos anos o campo tortuoso, envolvente e belo da poesia. Arrisquei, há época, dos meus vestibulares, em 1971/72, falar poeticamente de alguns temas.

Eram sonhos adolescentes em plenos Anos de Chumbo. Nasciam com asas cortadas e temores de altos vôos de liberdade. Havia muitos preconceitos, muitas barreiras, muitos temores e repressões a nos circundar.

Mas com Rilke e outras leituras me afirmava que algum dia outros tempos, outros ares, outras formas de amar e existir estavam por vir. E o que posso lhes dizer é que agora vislumbro mais ainda esta nova Era.

Vocês, com suas preciosas “obras de arte” da Diferença estão provocando uma demolição. Isso mesmo, em tempos de Inclusão e ruptura de paradigmas, vocês despontam em um meio dito universal da educação: a universidade.

Para que eu pudesse chegar também a ela, lá naqueles anos 70, também tive de superar alguns obstáculos. Tenham, portanto a certeza de que hoje meu coração se alegra com suas experiências. E, mesmo que não tivessem passado para as Universidades, sua chegada à sua porta de entrada já me teria deixado muito feliz.

Porém vocês não heróis, nem fomos nós também no combate aos que negavam a democracia e a liberdade. Apenas lhes lembro de que ainda não terminamos nossas tarefas do aprender a aprender. Não terminamos nossas lutas pela igualdade com respeito a quaisquer formas de ser e estar na diferença.

Por isso saibam que muitos os antecederam para estas portas da Universidade fossem tornadas mais acessíveis. Ainda há muitos que esbarram, em nosso país, em outras barreiras menos visíveis na educação universitária. As cotas que o digam, principalmente pelas reações que provocam.

Vocês até tinham, têm e terão direito a elas. O tratamento desigual para os desiguais deve ser mantido por lei. Porém, para que se faça justiça, devem ser garantidos também o seu sucesso e permanência no campus universitário. Sem nenhuma forma de discriminação, segregação ou preconceito.
Os seus anos de Universidade devem ser um passo para os seus sonhos alados e não cerceados. Vocês terão de entrar nesse mundo universitário onde ainda são muito poucos, onde ainda serão os “raros”.

Mas, se depender de minha tenacidade e desejo, um dia, não muito longe, serão apenas os novos calouros que chegaram. Não serão os “especiais”, muito menos os “comuns”, apenas serão iguais, porém diferentes.

Talvez, um dia no futuro, serão os que ocuparão, por mérito e dedicação, as vagas de ‘’alunos especiais’’ de mestrado e doutorado em alguma Universidade.
E, se preparem, pois muitos ainda assim sentirão, por motivos como a ignorância, que vocês são ou continuam “mentalmente limitados”. Eu lhes peço que sejam obstinados, determinados e resilientes. A demolição de preconceitos é lenta, mas é inexorável.

Enfim gostaria que se lembrassem deste ano de 2012. Muitas conquistas estão ocorrendo, muitos espaços novos de liberdade e afirmação de direitos humanos das pessoas com deficiência estão surgindo.

Lembrem-se, por exemplo, que nesse ano estará sendo comemorado o Dia Internacional da Síndrome de Down na ONU. No dia 21 março de 2012, como a idade de Kallil, será celebrado na sede da ONU em NY, com a Conferência “Construindo o nosso futuro”. E a afirmação do direito humano à Educação Inclusiva, à participação política e ao seu emponderamento para a Vida Independente serão os temas principais.

Lembrem-se de que passarão muitos anos para que um dia vocês, os novos e futuros cidadãos e cidadãs com Síndrome de Down, junto com todos os que desejam Outro Mundo Possível, estejam usufruindo todos os recursos de tecnologia assistiva como direito e acesso universal.

Lembrem-se, caros e doces jovens, os ecos de resistência às violentações e vulnerações de seus corpos estarão marcados pela memória dos cidadãos e cidadãs bolivianos que enfrentaram com suas “armas”, ou seja, seus corpos, suas cadeiras de rodas, suas rodas, suas bengalas e sua indignação pelo descaso do Estado com suas vidas e direitos.

Lembrem-se de que estarão um dia saindo pela mesma porta que entraram na Universidade. Nesse dia, espero e desejo, teremos conquistado a efetivação de políticas públicas que garantirão os seus postos de trabalho e emprego, com dignidade, acessibilidade e respeito às suas capacidades, habilidades ou limitações. E, ninguém, nenhum empregador, se sentirá fazendo-lhes nenhum favor ou concessão.

Lembrem-se caros diferentes fenotipicamente, seres misteriosos, como disse Rilke, porém não mais exóticos ou orientais habitantes da Mongólia, que muitos campos culturais e das artes propiciarão novas cartografias, novos modos de suavidade das relações existenciais, que permitirão a exposição e o desenvolvimento de suas potencialidades humanas. Seremos, então, menos eugenistas, higienistas e utópicos?

Espero então, jovens universitários, que também são cidadãos e cidadãs com Síndromes ou condições de vida e saúde que os tornam diferenciados, que suas diversidades, heterogeneidades e diferenças se tornem o motivo micropolítico e ético de sua entrada, permanência e sucesso nas escolas. Do ensino fundamental às pós-graduações universitárias. Com sua inclusão para além de todas as exclusões.

E, nesse devir e porvir estaremos comemorando uma memória de muitas lutas e ativismos na defesa intransigente dos nossos, de todos e dos seus Direitos Humanos, como os que alicerçam, por exemplo, a Convenção sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência.

E, então, eu estarei apenas como uma doce lembrança de quem lhes escreveu estas “mal tortuosas linhas”, lembrando-lhes o que vocês fizeram: romperam um preconceito, ou melhor, repetiram o grito de liberdade e igualdade que muitos cegos, surdos, pessoas com paralisia cerebral, surdo cegos, como Gennet de Corcuera, já haviam feito ecoar.
E, como me ensinou uma professora de português há muitos anos, lá em Minas Gerais: mais que viver além dos limites é preciso continuar a desafiá-los...

Até uma próxima e lhes envio, todos e todas, o meu mais doce abraço e afeto

Jorge Márcio Pereira de Andrade
Campinas 25 de fevereiro de 2012

PS- preferi publicar a foto do jovem Alysson e não de Kallil, pois sei que a imagem deste foi e será muito mais difundida pela mídia, vejam os links abaixo, mas ambos estarão em minha memória para sempre. E estou aguardando a “Revelação” de Alysson contra todos os racismos, preconceitos e bullying...

Copyright jorgemarciopereiradeandrade 2012/2013/2023 ad infinitum (favor citar a fonte e o autor em republicações livres na Internet e meios de comunicação de massa) TODOS DIREITOS RESERVADOS


Indicação de leitura no texto:
Rainer Maria Rilke https://pt.wikipedia.org/wiki/Rainer_Maria_Rilke
Cartas a um jovem poeta (Primeira carta) http://www.releituras.com/rilke_menu.asp

Matérias publicadas na Internet:

Aprovado no vestibular, 1º aluno com Down da UFG rompe preconceito

“Disciplina garantiu a vaga dele no vestibular”, diz mãe de jovem com síndrome de Down aprovado na UFG

Jovem na UFRN....É só acreditar!!!

Alysson vence as barreiras da vida e da educação 

Primeiro Dia Internacional da Síndrome de Down na ONU terá forte presença brasileira https://www.inclusive.org.br/?p=21924

Ato de deficientes físicos acaba em violência na Bolívia 

Sobre Dia Internacional das Doenças Raras – Instituto Baresi http://institutobaresi.com/

LEIA TAMBÉM NO BLOG:

A PAGAR-SE UMA CRIANÇA COM SÍNDROME DE DOWN

SÍNDROME DE DOWN E REJEIÇÃO: UM CORPO ESTRANHO ENTRE NÓS?

O VIGÉSSIMO PRIMEIRO DIA - CINEMA E SÍNDROME DE DOWN

01 NEGRO + 01 DOWN + 01 POETA = 01 Dia para não se esquecer de incluir

UMA LUZ NO FIM DO LIVRO

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

SEREMOS, NO FUTURO, CIBORGUES? Para além de nossas deficiências humanas


IMAGEM PUBLICADA – a fotografia de Neil Harbisson, a primeira pessoa a ser reconhecida como ciborgue por um governo depois de implantar uma câmera no olho. Ele participa de um projeto chamado “Eyeborg”, e tendo nascido com uma deficiência que lhe impedia de ver as cores, após ter um chip implantado em seu cérebro passou a ‘’escutá-las’’. Ele é mais um que nos indica um possível, quase iminente, futuro: o corpo humano será composto por diferentes “peças de reposição”, ou seja teremos a mais profunda, revolucionária e científica comprovação do quando desejamos nos tornar ‘’máquinas desejantes’’..., porém nunca deveremos, ou deveríamos nos tornar, nem um pouco, os ‘’exterminadores’’ do Futuro.


O corpo humano já foi desde as chamadas cirurgias da ‘’pedra’’ levado a muitas ‘’inclusões’’ de matérias primas que não o compõem em sua essência naturalizada. A notícia de um ciborgue, embora não seja o primeiro como diz a matéria, me lembrou de um seriado de TV dos anos 60: o homem de seis milhões de dólares. Em sua reconstrução, como no Robocop muito dinheiro foi necessário...


E, por falar em milhões, tivemos recentemente a notícia da autorização de crédito para que as pessoas com deficiência pudessem ter acesso a tecnologias Assistivas. Como parte do Viver sem Limites o Governo Federal publicou uma Portaria que: “Dispõe sobre o limite de renda mensal para enquadramento como beneficiário do financiamento para a aquisição, por pessoa física, de bens e serviços de tecnologia assistiva destinados às pessoas com deficiência e sobre o rol de bens e serviços passíveis de financiamento com crédito subvencionado para tal finalidade”. (* indico link no fim do texto)

São essas as Tecnologias que, como já disse devem ser de acesso universal, são definidas, oficialmente, como: “Tecnologia Assistiva é uma área do conhecimento, de característica interdisciplinar, que engloba produtos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivam promover a funcionalidade, relacionada à atividade e participação de pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida, visando sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social"

Qual será então a mudança que virá com estas tecnologias sendo subsidiadas? Inclusão social? Desejo, firmemente, a não exclusão dos que possuirão, ou já possuem, mais um aparato ou aparência diferenciada. Seja uma cadeira de rodas eletrônica ou um hiper implante coclear. Espero que não se tornem pelo ‘’valor incluso com dinheiro público’’ motivo de preconceito e segregação. 

Muitas pessoas tem um estranho olhar para alguma coisa eletrônica colada, inserida ou exposta como na cabeça de Neil? Tenho certeza de que muitos olharam esse homem apenas como ciborgue. Mesmo na Campus Party. Alguns de nós estereotipam Ets em qualquer Outro com uma diferença visível. Não, dirão outras pessoas, ele apenas teve a oportunidade de receber uma complexa rede tecnológica que o equiparou a todos nós. Ele enxerga escutando as cores.

Assim também há muitos e muitas que estão agora escutando este texto graças aos sintetizadores de voz. São pessoas cegas que compartilham com pessoas surdas implantadas o que há de mais avançado no campo das reprogramações do corpo humano. Apenas escutam. Há um olhar ou um escutar biônico entre eles? Há é muitas resistências e muitos preconceitos ainda para superarmos nessas conquistas científicas e biotecnológicas.

Por ser parte de uma revolução, que não veio com a Primavera, mas que silenciosamente se faz todos os dias, ainda causam desde temores até euforias. Temos é que discernir a sua real implicação com a mudança de qualidade de vida de quaisquer dos cidadãos ou cidadãs do Mundo Globalizado. Não devem ser tomados como o futuro já realizado. Muitas outras inovações estão em gestação...

O que gostaria de lembrar é que o acesso às conquistas tecnológicas deve ser contrabalançado com as conquistas em direitos humanos. Temos de disponibilizar o olho interno de Neil para quaisquer dos que dele necessitem. Nesse sentido é que indaguei há muitos anos atrás: Tecnologia assistiva para o acesso universal ou acesso universal às tecnologias?

Completo, hoje, que devemos nos ocupar da construção de um olhar e de uma reflexão ativa sobre as questões bioéticas e biopolíticas que surgem junto com estas inovações. Temos o dever de buscar entender as transversalidades dos “Homo Creator’’ com o ‘’Homo Ludens’’, que são as atuais fases conflitantes do velho ‘’homo sapiens’’. Ainda estamos produzindo e excluindo milhares de Homo Sacer. Ainda temos de estancar a eliminação do que chamamos de ‘vidas nuas’...

Ou seja temos de superar o temor que um olho biônico, um braço mecânico, uma mandíbula feita em impressora, um coração ‘’artificial’’, ou até mesmo um novo ‘’cérebro maquinal’’, possam trazer. Apenas não podemos ressuscitar o desejo da perfeição nazista de um Dr. Mengele, ou ficcionalmente dos Drs. Frankstein que persistem nas conquistas científicas.

Por isso apesar da velocidade física, semelhante e equiparadora, de um Pistorius, conhecido como "Blade Runner", por não ter as duas pernas e usar próteses finas feitas de fibra de carbono, temos também o filme que nos avisa sobre nossos futuros replicantes. Não podemos nos inebriar na velocidade da hiper-informação sobre as invenções que nos tornem ‘’menos deficientes’’.

Somos ainda, para além desse futuro onde não haverá incapacidade ou deficiência insuperável, essencialmente humanos. Mesmo que sejamos transformados em ‘’trans-humanos’’. O que nos trarão, revolucionariamente, as nanotecnologias, as engenharias genéticas ou as biotecnologias de ponta, no atual cenário sócio-político e econômico, não nos garantem um futuro mais justo, mais ético e mais humanitário.

A distribuição de um direito de acesso às tecnologias e serviços que possam mudar a vida de um sujeito com deficiência são, nesse sentido, uma prerrogativa ética e não uma concessão estatal ou macropolitica. 

Nossos sujeitos com deficiência ainda atravessam um momento histórico bem distante do que foi feito para Neil ou para a mulher de 83 anos, que teve uma mandíbula produzida pelo Biomedical Research Institute da Hasselt University, na Bélgica.

Ainda temos milhares de jovens ou crianças ou velhos com deficiências em ‘’antigas’’ e inadequadas cadeiras de rodas. Ainda temos milhares de barreiras arquitetônicas a demolir, mais ainda as barreiras atitudinais que levam a alguns empresários desejarem, espertamente, modificar o direito à Lei de Cotas. Dizem que querem uma ‘’flexibilização’’. No meu entendimento estão é mantendo as distâncias, negando os avanços e cortando custos. 

O que faz com que alguns ainda não reconheçam o que o futuro nos reserva? Todos e todas poderão, como eu, um dia ainda precisar do TITÂNIO, ou de uma troca de ‘’sobressalentes’’? Sei que teria muitos outros desdobramentos em minha vida e corpo acaso uma impressora tivesse sido possível para uma cópia, ideal e utópica, de toda a minha coluna vertebral...

Como você, ou melhor, todos nós, nos sentiríamos ao ter, como Neil, ou o cineasta canadense, implantados um ‘’eyeborg’’ no lugar de seu olho original, carnal e humano? Tornar-nos-íamos mais humanos, mais sensíveis, mais tolerantes, mais criativos, mais afetuosos, mais felizes, ou apenas poderíamos nos tornar mais mortais, no seu duplo sentido?


Copyright jorgemarciopereiradeandrade 2012-2013 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet ou outros meios de comunicação de massa)

Matérias citadas e fontes da Internet-

Primeiro ciborgue do mundo é destaque na Campus Party http://www.jb.com.br/ciencia-e-tecnologia/noticias/2012/02/06/primeiro-ciborgue-do-mundo-e-destaque-na-campus-party/

O que é Tecnologia Assistiva? http://www.assistiva.com.br/tassistiva.html

PORTARIA INTERMINISTERIAL MF e MCT e PR/SRH Nº 31, DE 6 DE FEVEREIRO DE 2012
http://www.editoramagister.com/legislacao_ler.php?id=19791

Mulher recebe prótese de mandíbula fabricada por impressora 3D 
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/02/120207_mandibula_transplante_mv.shtml

Tecnologia assistiva para o acesso universal ou acesso universal às tecnologias? (Jorge Márcio Pereira de Andrade) http://www.cidec.futuro.usp.br/artigos/artigo9.html

Cineasta canadense implanta câmera no lugar do olho http://www.bbc.co.uk/portuguese/videos_e_fotos/2011/09/110920_camera_olho_dg.shtml

Matéria publicada após a escrita deste texto:
Aprovada comercialização do primeiro 'olho biónico
http://www.dn.pt/inicio/ciencia/interior.aspx?content_id=3057074

Matéria publicada depois que escrevi este texto:

"Não quero vender olhos", diz ciborgue que "ouve" as cores
http://tecnologia.terra.com.br/campus-party/2012/noticias/0,,OI5602708-EI19138,00-Nao+quero+vender+olhos+diz+ciborgue+que+ouve+as+cores.html

LEITURAS INDICADAS para reflexão e crítica:
HOMO-CREATOR – Ética e Complexidade na reprogramação da vida – Tereza Mendonça, Editora PUC RJ, Rio de Janeiro, 2007.
HOMO SACER – O Poder Soberano e a Vida Nua I – Giorgio Agamben, Editora UFMG, Belo Horizonte, MG, 2002.

Leia também no BLOG –
A PARÁBOLA DA ROSA AZUL - 
https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2010/05/a-parabola-da-rosa-azul.html

POR QUE AS TECNOLOGIAS NOS AFETAM?
https://infoativodefnet.blogspot.com/2010/04/por-que-as-tecnologias-nos-afetam.html

UM DIA NÓS SEREMOS QUAL CIF? As Deficiências e sua(s) Classificação(ões)
https://infoativodefnet.blogspot.com/2011/11/um-dia-nos-seremos-qual-cif-as_28.html

ADEUS ÀS ARMAS - Sem Tiros no Futuro ou Cem tiros?
https://infoativodefnet.blogspot.com/2011/05/adeus-as-armas-sem-tiros-no-futuro-ou.html

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

OS NOVOS MALDITOS E AS NOVAS SEGREGAÇÕES: da Lepra ao Crack


Imagem Publicada - Uma gravura que reproduz um ser humano, na IDADE MÉDIA, com o rosto marcado por feridas, que representariam seu contágio pelo Bacilo de Hansen, e que as tornava portadores de um estigma: eram os "leprosos". Esta vestido com uma túnica vermelha que cobre todo o seu corpo, assim com um chapéu que o caracteriza como portador de um mal. Nessa gravura reproduzida em uma parede está um sino que era obrigatório portarem os ditos leprosos para que todos fossem avisados, nas cidades, de sua chegada. Em seguida, geralmente eram expulsos e segregados para além dos limites da cidade. Na foto aparece um desses sinos que esperamos nunca mais tenhamos de ouvir em nossas mentes, ou seja que possamos vencer e inverter o temor de sermos tocados por outros seres humanos, principalmente os que denominarmos de "malditos".

LEPRA, a palavra foi banida. O preconceito ainda nos habita e se reorganiza. O contágio torna o Brasil o segundo do Mundo globalizado e hipercapitalista, em suas múltiplas convulsões sócio-econômicas. Somos quem sabe também os campeões nos neo-preconceitos?

Houve um tempo em que estar ‘’leproso’’ nos levava para fora dos muros das cidades. Estivemos recentemente relembrando estas formas instituídas de segregação sanitária e biopolítica.

No dia 29 de janeiro foi comemorado o Dia internacional de Combate à Hanseníase. Nome em homenagem ao descobridor do bacilo: Hansen. Eis o novo termo que devemos utilizar. Embora ao pesquisar em língua espanhola o termo Lepra e Leprosos ainda persista. Minimamente nas notícias e na mídia. Bem como ainda habita e prolifera no âmago de muitos inconscientes.

Ao ser afetado pelas inúmeras matérias que difundi pelo Twitter e pelo Facebook, principalmente por uma, me lembrei de como eram tratados estes sujeitos hansenianos lá em MG. Na cidade próxima a minha, Três Corações, fora de sua periferia, existiu um ‘’leprosário’’. Um asilo. Era de lá que chegavam as minhas primeiras memórias sobre a hanseníase.

De lá vinham as cartas, de lá vinham essas missivas que deveriam ser queimadas após sua leitura. Eram contagiosas. Elas traziam os relatos breves de pessoas lá internadas, com letra de forma batida a máquina, e que pediam (ou melhor, suplicavam) a ajuda financeira e outras caridades para os que lá ‘’apodreciam’’. Esta é a imagem que nos ensinavam à época, quiçá uns 40, 50 ou mais anos atrás.

Estes velhos, amedrontadores, contagiantes e, segregadamente, miseráveis retornam hoje à minha mente. O que me trouxe essa memória? Trouxe-me o quanto, apesar dos muitos anos, ainda temos um modelo de medo e repulsa associado às doenças consideradas ‘’malditas’’. O temor que se projete em um corpo anômalo, anormal, marginalizado e doentio. Uma vida nua.

Uma vida nua que foi aplicada, por exemplo, à existência de um homem no Mato Grosso. O idoso José Garcia da Cruz, de 106 anos, viveu essa realidade. “Temos registros da chegada dele no São Julião em 1941, poucos dias depois da inauguração do local. Ele foi o 6º paciente a ser internado e vive aqui há pouco mais de 70 anos”, confirma o diretor do Hospital São Julião. Setenta anos de reclusão e isolamento para o “bem” da sociedade. Seria ele um Lázaro que resiste à Vida?

Ele me lembrou, também, das cartas contagiantes de MG: “Quando eu ia ao mercado era um problema, principalmente na hora de pagar, porque as pessoas não queriam pegar o dinheiro porque tinham medo de encostar em mim. Elas tinham medo de pegar a doença”, contou ele. A reportagem finaliza com um alívio para as boas consciências: “Em 2007, Cruz passou a receber uma pensão especial vitalícia do governo federal. Ele foi o primeiro brasileiro a receber o benefício”.

Por isso temos de nos indagar com mais seriedade ética e responsabilidade bioética das novas práticas de internamento e reclusão. Voltamos aos séculos anteriores, ou pior regredimos à época da Nau dos Insesatos? Que tempo e era é essa que estamos imersos até o pescoço?

Estamos no tempo dos que biopoliticamente se tornaram motivo de "internações compulsórias e involuntárias". O leprosários estão sendo protagonizados hoje, institucionalmente, pelos asilos, pelas comunidades de tratamento ou pelos hospitais que deverão internar e re-internar a nova epidemia: o Crack.

Tomando como plataforma política o Estado e a cidade de São Paulo resolveram tratar uma de suas muitas ‘’chagas’’ sociais: a Cracolândia. Esqueceram, porém, que, como no Pinheirinho, apesar da miséria ou da pobreza, estavam lá e ali aglutinados muitos corpos humanos contagiantes. Para além de suas desfiliações sociais eram e são apenas seres humanos...

Estes corpos e vidas nuas não transmitem hoje apenas doenças infectocontagiosas. Eles transmitem ao nosso povo, dito maioria, e seus governantes um sentimento profundo de repulsa misturado com medo. E nessa hora o melhor é expulsá-los do coração da cidade...

São os excluídos a serem incluídos pelo seu abrigamento, isolamento e ‘’tratamento humanizado’’. Mesmo que precisemos usar nossas forças policiais e a velha repressão dos tempos da Ditadura...

Quantas vezes pensamos que estas ações repressivas são a melhor forma de lidar e resolver estas chagas que nós próprios alimentamos? A aprovação de uma internação compulsória tornou-se estatisticamente um desejo, com toda certeza, de uma maioria, diz o DataFolha de mais de 54%. Mas anunciaram como uma maioria que: “No Brasil, 90% aprovam internação involuntária de viciados...”.

Isso mesmo: viciados. Era assim também que lá nos anos 60 estereotipavam quem usasse cabelos compridos, falasse em paz, rock ou fumasse maconha, caminhando e cantando dentro de alguma calça jeans. Devem ser agora estes o motivo de algum saudosismo ou desejo de torná-los os ‘’bichos de sete cabeças’’, como o foi o jovem Carrano. E a Rita Lee tem de se despedir deles rumo a uma nova ‘’acareação’’ com as novas formas de reprimir.

Nem mesmo atualizam o termo para dependências químicas ou a drogadição. São os perniciosos fumantes de crack ou de outras rocks (sem roll) que classificamos higienisticamente, são os neo-portadores de um velho estigma: são os novos malditos, os novos leprosos...

Vamos então aplaudir as iniciativas governamentais de erradicação das drogas. Mas, por favor, não tomemos a máxima popular de ‘’cortar o mal pela raiz’’. Assim pensavam os velhos fascistas e alguns nacional socialistas. A erradicação dessa nova ‘’epidemia’’ não é a eliminação dos corpos contagiados por ela. Muito menos a criação de novos mini-cômios.

Levamos alguns séculos para compreender o quanto estigmatizamos os que foram chamados de leprosos. Quantos séculos serão necessários para entender que os ‘’viciados’’ são uma questão da saúde, das políticas públicas, dos direitos humanos e, principalmente, hoje, das indústrias farmacêuticas e das biotecnologias. Podemos dizer que a verdadeira maioria dos dependentes é sim uma questão da Bioética.

Ao buscarmos “curas’’ radicais, negando a autonomia e os direitos fundamentais do sujeito, nos mostra a História que criamos quase sempre os Estados de Exceção, os Campos de concentração ou extermínio, os Manicômios, os Leprosários, os Asilos e todas as outras formas institucionalizadas de disciplina ou controle dos corpos humanos.

Os discursos competentes que elaboramos datam de muito tempo atrás. Algumas pessoas colocam ainda estes ‘’viciados’’ como perturbação da tranquilidade comercial e econômica das cidades. Estes ‘’desocupados’’ devem desocupar os territórios produtivos hipercapitalizados. E, se possível devem ir para campo dos refugiados, afinal eles são uma ‘’mancha’’ improdutiva para a Sociedade do consumo na Idade Mídia.

Vamos, então, como na época dos tratamentos "morais" e "asilares", tão bem dissecados e estudados em sua genealogia por Foucault, providenciar novos ‘’panópticos’’ que possam abrigar essa gente, ou essa ralé (segundo a visão do programa Mulheres Ricas). E, talvez, isolando-os também nos livramos de suas incomodas presenças em nossas cidades, ou será que apenas em nossos “ castelos”?

EM TEMPO, lhes anuncio que o meu corpo, aparentemente não contagiante, foi submetido recentemente a uma biópsia, em meu braço esquerdo, no trajeto do nervo cubital, para um possível diagnóstico diferencial com a hanseníase (uma lembrança/estigma da Saúde Mental).

Se me for dado o positivo serei eu também mais um proscrito? Em qual asilo encontrarei, longe de todos vocês, a proteção para o meu maior risco: ser tão mortal, tão carnal, tão vivo, tão frágil, tão desassossegado e tão humanamente contagiante como todos nós?

E nossos prédios ou nossos Titanics modernos também caem ou afundam... Os muros invisíveis é que se reconstroem e reinstitucionalizam, incessantemente.


Copyright jorgemarciopereiradeandrade 2012-2013 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet ou outros meios de comunicação de massa)

LEIA(m) E SE INFORME(m), e combata(m) os estigmas e preconceitos:
Lepra http://pt.wikipedia.org/wiki/Lepra
Hanseníase http://portal.saude.gov.br/portal/saude/profissional/area.cfm?id_area=1466

Segundo país do mundo em casos de hanseníase, Brasil também precisa combater o preconceito http://www.redebrasilatual.com.br/temas/saude/2012/01/segundo-pais-do-mundo-em-casos-de-hanseniase-brasil-tambem-precisa-combater-o-preconceito
'Tinham medo de encostar em mim', diz idoso que se curou da hanseníase http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2012/01/tinham-medo-de-encostar-em-mim-diz-idoso-que-se-curou-da-hanseniase.html

HOSPITAL EM ITU-Pirapitingui tem 261 pacientes; na década de 1960 eram 4 mil http://portal.cruzeirodosul.inf.br/acessarmateria.jsf?id=361348


Governo federal cria unidades de acolhimento "humanizado" a dependentes químicos http://www.redebrasilatual.com.br/temas/saude/2012/01/governo-cria-unidades-de-acolhimento-201chumanizado201d-de-dependentes-quimicos

Antropólogo: Ação na Cracolândia é digna do século 18 http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5553294-EI6578,00.html

No Brasil, 90% aprovam internação involuntária de viciados http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/90-dos-brasileiros-aprovam-internacao-involuntaria-de-viciados

Para leitura crítica:

O Poder Psiquiátrico – Michel Foucault – Editora Martins Fontes, São Paulo, SP, 2006.

Estado de Exceção – Giorgio Agamben – Editora Boitempo, São Paulo, SP, 2004.

Leia(m) também no BLOG:

O RETORNO DA INTEGRAÇÃO PELA INCLUSÃO: novos muros nas escolas, fábricas e hospitais...

http://infoativodefnet.blogspot.com/2011/12/o-retorno-da-integracao-pela-inclusao.html

SAÚDE MENTAL E DIREITOS HUMANOS COMO DESAFIO ÉTICO PARA A CIDADANIA
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O MANICÔMIO MORREU? PARA QUE O MANTEMOS VIVO EM NÓS? 
http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2015/05/o-manicomio-morreu-para-que-o-mantemos.html